Camburão era o nome dado ao carro de polícia que fazia rondas pela cidade. Pessoas suspeitas, geralmente negros, bêbados ou pobres, eram abordadas pela Polícia Civil. Os policiais saiam da viatura e exigiam a identificação da pessoa. Caso fosse constatada alguma irregularidade, a pessoa era detida, e levada para a delegacia, na traseira do veículo.
“Camburão” era também o apelido que meus colegas davam ao meu pai. Não poucas vezes, antes mesmo de ele avistar a mim ou aos meus irmãos, éramos avisados pelos colegas: “Renato, ‘o camburão’ está lá no bloco D”. Ou: “Ricardo, vi seu pai no bloco A”. Ou ainda, “Jeiel, seu pai andou procurando vocês”.
É que, apesar de sair muito cedo para o trabalho e chegar depois das 20h em casa, meu pai tinha o costume de sair e procurar cada filho. Queria saber onde estávamos, com quem e o quê fazíamos. Quando nos via, ele nos abraçava, beijava, e expressava alegria e amor por nós. Não poucas vezes, ele também nos cheirava, para perceber resquícios de fumo. Ele bem sabia que a juventude daquele lugar vivia em busca de novidades e aventuras. Sabia que adolescentes são suscetíveis ao grupo. No dizer de Rubem Alves, são verdadeiras maritacas, que gostam de fazer tudo em bando. Papai sabia que era muito difícil não se deixar dobrar pela influência dos outros. Então, mesmo cansado, todos os dias saía à nossa procura. A expressão ainda não havia sido cunhada, mas papai, “o camburão”, fazia com que pagássemos o maior mico diante dos colegas. Sentíamos uma vergonha enorme por causa dele. Dos seis blocos de apartamento daquele condomínio, ele era o único pai que, diariamente, andava a procura dos filhos.
“O Camburão” também tinha regras claras. Só podíamos ficar na rua até às 22h. Muitas vezes questionávamos aquela ordem, dizendo: “nós somos os únicos que temos de chegar a casa às 22h. Todos os nossos amigos ficam na rua até muito mais tarde”. Papai, “o Camburão”, não se comovia. Os outros não eram filhos dele. Os dele, ele cuidava.
Vi quando muitos daqueles colegas começaram a se envolver com drogas, por pura curiosidade e brincadeira. Infelizmente, assisti de perto o processo de degradação de outros. Testemunhei o desespero por dinheiro. Vi filhos de gente boa vendendo roupas de grifes por ninharia, depois arrombando carros, para conseguir dinheiro pras drogas. Nunca vi seus pais lá na rua fazendo rondas. Logicamente, não viram nada disso. Entendi, então, quando o governo lançou uma campanha antidrogas com o seguinte slogan: “seja pai do seu filho, antes que um traficante o adote”. Enquanto isso, “o Camburão”, meu pai, continuava a sua rotina de rondas. Benditas rondas.
Aquelas rondas chamavam-se amor, pois quem ama cuida. Aqueles limites, que tanto me envergonhavam, chamavam-se zelo. E aqueles constrangimentos diante dos colegas tornaram-se saudosas recordações de um grande amigo. Hoje, agradecemos a Deus pelo “Camburão” que marcou e abençoou as nossas vidas.
A você, pai, cuja vida tem sido um exemplo de retidão, amor, zelo e dedicação aos filhos, contando esta história, rende-lhe homenagem um filho saudoso, que foi amorosamente detido pelos braços de um “Pai-Camburão”.
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