domingo, 10 de outubro de 2010

O Evangelho das Bailarinas

Chico Buarque e Edu Lobo compuseram “Ciranda de Bailarina”, em 1983, para o musical “Grande Circo Místico”. A letra mostra o fascínio que as bailarinas, disciplinadas, com suas roupas mimosas, corpos esguios e pés milimetricamente esticados provocam no auditório. As cortinas se abrem e, ao primeiro acorde, magicamente elas se transformam em seres perfeitos, intocáveis, divinos. Muitos, na plateia, ficam tão encantados que não veem seus pés deformados, como realmente são. Ei-la:

“Procurando bem todo mundo tem pereba,
marca de bexiga ou vacina.
E tem piriri, tem lombriga, tem ameba,
só a bailarina que não tem.
E não tem coceira, verruga nem frieira,
nem falta de maneira ela não tem.
Futucando bem todo mundo tem piolho,
ou tem cheiro de creolina.
Todo mundo tem um irmão meio zarolho,
só a bailarina que não tem.
Nem unha encardida, nem dente com comida,
nem casca de ferida ela não tem.......”


Muitas igrejas evangélicas apresentam a fé cristã como uma bailarina. A pessoa se converte à sua igreja, e não tem mais pereba, piriri, lombriga, ameba, nem coceira ou frieira. A bailarina cristã também não tem “sala sem mobília, goteira na vasilha, problema na família”. É o céu na terra. Tudo perfeito. Tudo certinho. Nenhuma incomodação, nada de dor e de reveses a que os simples mortais são acometidos.

A fé cristã pregada por essa gente apresenta um cristianismo sem dor, sem trauma, sem adversidades. Não admite sequer uma espinhela caída, nem uma dor nas cadeiras, ou uma mera escarlatina. Não há qualquer concessão para um reumatismo, uns incômodos gases, caspas no cabelo e espinhas nos rostos. Não. É um tal de crente saradão, sem crises e sem problemas que dá até para desconfiar. As bailarinas de Deus, tais como as do Chico, “não têm medo de subir, gente; medo de cair, gente; medo de vertigem”. Este tipo de fé, assim apregoada, devia ser enquadrada como propaganda enganosa.

Tão diferente dos heróis bíblicos, que foram torturados, passaram por escárnios e açoites, algemas e prisões, foram apedrejados, serrados pelo meio, mortos a fio de espada, andaram peregrinos, necessitados, afligidos, maltratados, errantes pelos desertos, pelos montes, pelas covas e pelos antros da terra. A Bíblia diz que, apesar dessas amarguras, o mundo não era digno deles (Hb 11.35-38).

Paulo pregou aos gálatas quando foi tratar de um problema de uma enfermidade (Gl 4.13). Deixou seu amigo Trófimo doente em Mileto (2Tm 4.20). Aconselhou seu filho na fé, Timóteo, a tratar a sua úlcera estomacal (1Tm 5.23). Jesus foi chamado a acudir seu amigo Lázaro, a quem amava, que estava muito doente, e acabou morrendo (Jo 11.3).

Davi mentiu, adulterou, urdiu a morte de um homem, guerreou e, mesmo assim, se tornou “o homem segundo o coração de Deus”. Abraão enfrentou fome, mentiu, errou, negou a própria mulher para livrar a sua cara, e foi chamado de “o amigo de Deus” e “pai da fé” . Os discípulos eram orgulhosos, incrédulos, e na primeira tempestade temeram. Muitos deles eram cabeças duras, e não confiaram em Jesus. Mesmo assim se tornaram apóstolos (enviados). Pedro, após a ressurreição, foi censurado por Paulo, por causa da sua incoerência (Gl 2.11). Ou seja, eram crentes, mas falhos, como todos mortais. Não perderam a sua humanidade. Mas, nas suas fraquezas, experimentaram a graça misericordiosa de Deus.

As duas últimas frases de “Ciranda da Bailarina” devolvem a verdade: “Procurando bem..., todo mundo tem.” Decididamente, a fé cristã não faz de ninguém um super-homem. Procurando bem, todos os santos têm pés de barro. O que o evangelho faz é transformar frágeis pecadores em pessoas capazes de enfrentar todas as circunstâncias, as boas e ruins, porque têm em suas vidas um Deus poderoso e solidário que os fortalece (Fp 4.13)’. O resto é conto de bailarina.

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